sexta-feira, 22-novembro-2024
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Açougues e mercados podem vender ossos de boi? Entenda a polêmica sobre a placa em SC

placa sobre a venda de ossos de boi em um estabelecimento de Santa Catarina gerou polêmica na última semana e dividiu opiniões entre os que defendem a comercialização e os que desaprovam. No cartaz estava: “Osso R$ 4,00 Kg. Osso é vendido e não dado”. O Procon classificou como “desumano” cobrar pelo produto (veja mais abaixo)que tem substituído a carne no prato de muitas famílias brasileiras, ao lado de ovos e verduras, durante uma crise econômica.

A família da doceira Angelita Pereira de Oliveira de São José, na Grande Florianópolis, é uma delas. Segundo ela, o alimento não faz parte das refeições há pelo menos dois meses. A alta do preço do produto desde 2019 fez com que ela e os demais moradores da casa se alimentem com ossos de boi e de porco que compram em açougues.

“Antigamente, os açougueiros faziam doação desses ossos. E hoje em dia, não. A gente vai no açougue, a gente pergunta é ‘ó, é R$ 5, é R$ 10′”, afirma Angelita.

 

Para a economista e professora de Economia e Finanças Públicas da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc) na Escola Superior de Administração e Gerência (Esag), Ivoneti Ramos, a doação de ossos é “uma praxe histórica”. Segundo ela, a retirada do alimento vai fragilizar ainda mais a camada de pessoas com menor renda e, consequentemente, mais atingidas pela pandemia (veja mais abaixo).

Mas afinal, a venda é permitida?

 

A prática é permitida pelas legislações nacional e estadual, conforme órgãos e entidades consultadas pelo g1, mas precisa ser fiscalizada, assim como outros produtos. Também é necessário aos estabelecimentos que comercializam ossos, segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), seguir as Boas Práticas de Manipulação de Alimentos nos termos da RDC 216/2004.

A comercialização está prevista e, consequentemente autorizada, na Resolução 1 do Departamento de Inspeção de Produtos de Origem Animal (Dipoa) do Ministério da Agricultura. A informação é da médica-veteriária, Flávia Klein, do Departamento Estadual de Inspeção de Produtos de Origem Animal (Deinp) e que faz parte da Companhia Integrada de Desenvolvimento Agrícola de Santa Catarina (Cidasc). O documento é de 9 de janeiro de 2003.

Segundo a Anvisa, não há impedimento na legislação sanitária para venda de ossos bovinos em açougues. Se o produto está regularizado para o consumo humano no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), ele pode ser comercializado nos estabelecimentos, informou o órgão. O Mapa foi procurado pelo g1, mas não deu retorno até a noite de quinta-feira (7).

Advogado de Direito Cível e do Consumidor, Felinto Deusdedith Ribeiro Júnior, diz que não há irregularidades com a venda do produto, uma vez que o supermercado compra a carne com os ossos e a fraciona para a venda.

“Ele [comerciante] tira o filé mignon, o contrafilé, o coração, o intestino do boi e vende fracionado. Não existe nenhum problema em um mercado vender isso fracionado. Ele [comerciante] compra, ele pode vender. Assim como o pé de galinha e a moela, partes que não são consumidas por todas as pessoas, mas que algumas gostam”, diz o advogado.

 

Uso em pratos tradicionais

 

Para o presidente da Associação dos Frigoríficos Independentes de Santa Catarina (Afisc), Miguel Do Valle, além de legalizada, a venda do item deve ser incentivada. Segundo ele, a prática é feita há anos e os itens são usados em pratos tradicionais.

A questão, para o presidente, chamou a atenção porque mais pessoas passaram a procurar pelos ossos, já que a carne teve aumento no preço.

“A venda de carne com osso, como um retalho, ou só o osso, sempre foi tradicional na venda de açougues. Existem pratos que precisam de ossos, existe um retalho de osso, principalmente de suíno, que é muito comercializado. O pessoal no inverno faz a ‘quirera’ e bota esses ossinhos. Isso vem sendo feito tradicionalmente há muitos anos”, afimrou.

 

A Secretaria de Estado de Agricultura também afirmou, por meio de nota, que “o uso de ossos na alimentação humana para consumo próprio é uma prática comum aplicada na culinária em diversos pratos típicos regionais“.

No entanto, ressaltou que “tais hábitos devem estar associados a obtenção de matéria-prima inócua e de qualidade, no que diz respeito a aspectos higiênicos-sanitários envolvidos”.

Responsabilidade

 

Antes de os ossos serem disponibilizados aos consumidores é preciso verificar as responsabilidades dos estabelecimentos na cadeia produtiva.

Segundo o presidente da Associação Brasileira de Frigoríficos (Abrafrigo) Paulo Mustefaga, as indústrias são responsáveis por repassar para o varejo o produto envolvendo a carne e a carcaça de forma certificada e dentro das normas de qualidade.

“A cadeia produtiva é grande e geralmente são aproveitadas todas as partes do boi. No entanto, a partir do momento em que entregamos os produtos para o varejo, que vai vender isso aos consumidores, os cuidados e as formas de comercialização ficam sob responsabilidade dos açougues e supermercados”, explica.

 

A Secretária de Agricultura de Santa Catarina (SEA) informou que a inspeção industrial e sanitária de produtos de origem animal está prevista no decreto 9013/2017.

Fiscalização

 

Segundo o governo de Santa Catarina, os produtos podem ser comercializados, desde que “possuam inspeção anterior dos órgãos da agricultura e que os locais de comércio sigam as normativas referentes às boas práticas e rastreabilidade”.

Em nota, a Vigilância Sanitária informou possuir conhecimento de que a população adquire ossos nos estabelecimentos há muitos anos e que estabelecimentos podem ser penalizados pelo órgão se não estiverem cumprindo com os requisitos de boas práticas das legislações vigentes.

Procurada, a Vigilância Sanitária de Florianópolis, onde a placa citada acima foi colocada, reforçou que fiscaliza os estabelecimentos na cidade. Dois decretos e uma portaria estabelecem as regras no Estado.

Decreto n. 31455/87:

  • Art. 110: Toda pessoa proprietária de/ou responsável por açougue ou similar deve providenciar para que os ossos, sebos e resíduos sem aproveitamento imediato sejam depositados em recipientes herméticos, de material impermeável, não absorvente e de superfície lisa, mantidos em local próprio e preferentemente sob refrigeração.
  • § 4º Os veículos, para transporte de ossos, sebos e demais resíduos de alimentos, devem dispor de compartimento de caga fechado ou totalmente coberto com lona, a menos que o material esteja acondicionado em recipientes hermeticamente fechados, devendo ser mantidos em perfeitas condições de limpeza e higiene.
  • § 2º No caso de constatação de falhas, erros ou irregularidades sanáveis, e sendo o alimento considerado próprio para o consumo, deve o interessado ser notificado da ocorrência e concedido o prazo necessário para a devida correção, decorrido o qual proceder-se-á a novas análises.
  • § 3º No caso de persistirem falhas, erros ou irregulariedades fica o infrator sujeito às penalidades cabíveis.

 

Decreto n. 02/2015:

O art. 104 do Decreto nº 31.455, de 20 de fevereiro de 1987, passa a vigorar com a seguinte redação:

  • “Art. 104 Toda pessoa proprietária ou responsável por estabelecimento de armazenamento, fracionamento e venda de carnes e derivados, também chamado de açougue ou similar, inclusive em supermercados, somente pode fazê-lo funcionar com o Alvará Sanitário, obedecidos os requisitos da legislação específica.

 

Portaria conjunta n. SES/SAR 264/16:

  • Art. 5º O Entreposto em supermercados e similares além de temperar, poderá receber, fracionar, guardar, conservar, porcionar e distribuir carnes e seus derivados inspecionados, devidamente embalados e rotulados, desde que possuam estruturas adequadas para tais finalidades, conforme previsto na legislação vigente.
  • Leia o documento completo aqui.

 

Procon emite recomendação e visita estabelecimentos

 

Após a imagem da placa em um estabelecimento viralizar nas redes sociais, a Procuradoria de Proteção e Defesa do Consumidor (Procon) emitiu uma nota técnica recomendando que empresas, como açougues e mercados, não vendam osso de boi. Segundo o diretor do órgão, Tiago Silva, a prática pode ferir o Código de Defesa do Consumidor por exigir dele ‘vantagem manifesta excessiva’.

A Associação Catarinense de Supermercados (Acats) também assinou o documento.

“No momento de crise que estamos vivendo é até desumano que esses estabelecimentos estejam cobrando por ossos”, disse Silva.

Na terça-feira (5), o Procon visitou 26 estabelecimentos que vendem carne e não encontrou nenhuma comercialização de ossos bovinos. O local onde a placa (veja acima) estava, também foi fiscalizado e o proprietário retirou o cartaz.

Já na quarta-feira (6), o órgão de defesa do consumidor do Estado visitou outros 19 locais e também não encontrou comércios vendendo o produto.

Doações

 

Economista e professora de Economia e Finanças Públicas da Udesc Esag, Ivoneti Ramos afirma que ainda não há nada “formado sobre o assunto” na área da economia em relação à venda para o consumo humano e seus preços. Segundo ela, o que existe é uma praxe de doação histórica que, se retirada, vai fragilizar ainda mais a camada mais atingida pela pandemia.

“Há, também, compradores de ossos para outros usos, mas de forma comercial, que não entra nesta questão que está sendo refletida agora. Pelo espírito solidário, a doação deveria ser mantida. Como temos uma sociedade muito desigual, há quem precise deste tipo de alimento. Às vezes, é tudo o que se tem em casa para a subsistência”, analisa a economista.

Felinto Deusdedith Ribeiro Júnior, advogado do Direito do Consumidor, explica que a qualidade do produto doado, seja ele osso ou outro alimento, é responsabilidade do estabelecimento e tem previsão no Código da Defesa do Consumidor. Por esse motivo, ainda segundo o advogado, que muitos restaurantes e mercados optam pelo descarte, ao invés da doação.

“É muito difícil ver os estabelecimentos doarem os produtos que estão vencendo ou que sobram, porque existe a responsabilidade do estabelecimento. Se um estabelecimento te entregar um produto de graça e ele te fizer mal, não estiver próprio para consumo, o estabelecimento é responsável”, explica.

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