Problema afeta diversas universidades e ameaça até estudos sobre Covid-19.
Cientistas brasileiros estão desde o final de maio sem possibilidade de importar materiais para pesquisas com isenção fiscal. Com isso, atividades dos principais centros científicos do país tiveram que parar ou acabaram impactadas pelo aumento de gastos. A informação é da Folha.
No último dia 14 de julho, pró-reitores de pesquisa da USP, Unicamp e Unesp enviaram uma carta ao ministro da Ciência e Tecnologia, Marcos Pontes, pedindo a recuperação dos valores costumeiros da cota de importação.
“Essa redução está afetando seriamente centenas de projetos de pesquisa em andamento”, afirmaram os pró-reitores, em nome do Cruesp (Conselho de Reitores das Universidades Estaduais Paulistas). “Devemos mencionar que, dentre esses projetos afetados, se encontram vários dedicados à obtenção de uma vacina nacional, bem como medicamentos para o combate da Covid-19.”
A cota de importação permite que, através do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), instituições, empresas e cientistas importem, isentos de taxas, equipamentos, acessórios e matérias-primas destinados às pesquisas científicas e tecnológicas.
Em 2020, o valor da cota de isenção era de US$ 300 milhões (mais de R$ 1,5 bilhão, em valores atuais). Já em 2021, a cota foi de somente US$ 93,29 milhões (pouco mais de R$ 482 milhões).
Nos últimos meses, diversas instituições científicas do país entraram em contato tanto com Marcos Pontes quanto com o ministro da Economia, Paulo Guedes, para expor o tamanho do problema caso as isenções não fossem retomadas.
“O desenvolvimento e progresso de centenas de pesquisas dependem de aquisições no mercado externo desses materiais, inclusive as que dizem respeito à busca para vacina nacional em curso, bem como de outros medicamentos essenciais de combate à Covid-19 e outras patologias”, afirmavam, em junho, oito das principais entidades científicas do país, em cartas enviadas a Guedes e Pontes.
Entre as instituições signatárias estão a ABC (Academia Brasileira de Ciências), a SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) e o Confies (Conselho Nacional das Fundações de Apoio às Instituições de Ensino Superior e de Pesquisa Científica e Tecnológica).
Ainda em janeiro, o próprio CNPq chegou a encaminhar ofício ao Ministério da Economia para restabelecimento da cota, como mostrou o blog de Lauro Jardim, no jornal O Globo.
“Como o montante já estava definido na PLOA [Projeto de Lei Orçamentária Anual] e, diante da impossibilidade de corrigi-lo, foi mantido na portaria, mas com o compromisso dos Ministérios da Ciência, Tecnologia e Inovações, e da Economia de buscarem, com urgência, uma solução para o problema orçamentário”, dizia o conselho, em nota à imprensa em janeiro.
Até o momento, porém, tais esforços não surtiram efeito, ao mesmo tempo em que pesquisas já pararam por causa do fim da cota neste ano.
“Para mim isso é a morte lenta da pesquisa. É asfixia. Você mata um laboratório se você não puder fazer aquisição de equipamentos-chave”, afirma Fernando Peregrino, diretor-executivo da Fundação Coppetec/UFRJ e presidente do Confies.
A Folha teve acesso a listas de uma parcela dos projetos parados ou que sofreram impactos em algumas universidades do país. Entre elas estão UnB, UFPR (Universidade Federal do Paraná), UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e Furg (Universidade Federal do Rio Grande).
Na UnB (Universidade de Brasília), estudos de Covid chegaram a ser impactados. Um deles busca avaliar o uso de plasma retirado do sangue de pacientes recuperados da Covid no tratamento da doença. Nesse caso, o material foi importado mesmo sem a isenção fiscal, ou seja, com pagamento de tributos, devido à urgência do momento pandêmico.
Kits de laboratório, peças de reposição e maquinário estão entre outros itens que, em geral, travaram projetos que esperavam por suas importações sem impostos.
Até mesmo o Sirius, acelerador de elétrons brasileiro, sob responsabilidade do Cnpem (Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais), é diretamente impactado pelo fim da cota. Na inauguração do acelerador, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) questionou: “Considerando as grandes empresas que podem se beneficiar dessa obra, por que não fazemos deste lugar o Vale do Silício da biotecnologia?”
Também parte do Cnpem, o LNBio (Laboratório Nacional de Biociências), que desenvolve pesquisas sobre a Covid-19, também tem sido afetado. Outro local impactado foi o Laboratório Brasileiro de Controle de Dopagem, segundo Peregrino.
O laboratório, localizado na UFRJ, foi usado para os testes antidoping das Olimpíadas e das Paraolimpíadas de 2016, no Rio de Janeiro. Além dele, o Ladetec (Laboratório de Apoio ao Desenvolvimento Tecnológico), como um todo, do qual a área de doping faz parte, tem encontrado dificuldades de funcionamento por causa do fim da cota.
“A área biológica requer muita coisa de materiais e substâncias”, afirma Peregrino. ” Esse é um laboratório afetado que vive de importação”, diz, referindo-se ao laboratório de doping.
O presidente do Confies afirma que uma resolução para o problema chegou a ser aventada para a semana passada, mas não se concretizou. Segundo ele, é inconcebível uma situação como a atual para uma nação com o padrão de desenvolvimento do Brasil.
“Vai definhando [as equipes de pesquisa]. Perde a capacidade de alavancar dinheiro, de formar alunos, perde prestígio, deixa de publicar, deixa de produzir. É asfixia”, diz Peregrino.
Giuseppe Romito, professor da faculdade de odontologia da USP, foi outro que teve sua pesquisa travada pelo fim da cota e teve que parar seu projeto clínico, feito em parceria com a Universidade de Zurique (Suíça).
“A gente faz tudo que é estimulado. Parcerias internacionais, com centros de pesquisa de excelência e tudo mais. E aí, quando chega ao momento em que conseguimos o material para importar, a gente não consegue porque a cota acabou”, diz Romito. “Você perde a confiabilidade frente aos parceiros. As pessoas também estão planejadas lá fora.”
Esses são só alguns dos projetos e laboratórios afetados pelo fim da cota. As entidades brasileiras que costumam fazer maior uso da cota são o Instituto Butantan e a Fiocruz —através de sua fundação de apoio, a Fiotec—, os responsáveis pelas produções das vacinas contra a Covid que estão guiando o enfrentamento à pandemia no Brasil em 2021.
O impacto tanto no Butantan quanto na Fiocruz, porém, não levou a paralisações em projetos. O Butantan, em nota, afirma que, desde o fim da cota, “passou a contar com recursos próprios e de outras fontes de apoio, não interrompendo nenhum de seus projetos”.
Nos projetos tocados pela Fiocruz junto a Fiotec (fundação que usufrui da isenção), a situação é parecida, contando com outras fontes de orçamento para não paralisar as pesquisas. Em 2020, dos US$ 300 milhões de cota de isenção para importações, a Fiocruz/Fiotec usou cerca de US$ 48 milhões. Neste anos, a fundação usou US$ 16,6 milhões dos US$ 93 milhões disponilizados para o país.
“Essa redução da cota tem um impacto direto, impacta nas diversas áreas e no atendimento às demandas do SUS”, afirma Priscila Ferraz, vice-presidente adjunta de gestão e desenvolvimento institucional da Fiocruz, que relembra os diversos setores da saúde nos quais projetos da instituição atuam.
Segundo Ferraz, no caso da Fiotec, o impacto do fim da cota é sistêmico. “De qualquer forma, há o prejuízo, a desaceleração”, afirma.
Ela aponta que, sem a isenção, pode haver um incremento de custos de 20% a 40%.
Nos casos de alguns projetos, inclusive, o próprio governo brasileiro pode acabar tendo gastos adicionais derivados da ausência da cota de importação.
A Folha procurou o Ministério da Economia, o Ministério da Ciência e Tecnologia e o CNPq, mas, até a publicação desta reportagem, não tinha recebido resposta desses órgãos.