A historiadora Marly Motta brinca que, desde a fundação de Brasília em 1960 e a fusão dos Estados do Rio de Janeiro e da Guanabara em 1975, há uma espécie de nuvem que paira no céu fluminense e ocasionalmente se espalha pelo país.
A nuvem é uma metáfora para o inconformismo com a perda do posto de capital brasileira pelo Rio de Janeiro e com a incorporação desse antigo Distrito Federal (que de 1960 a 1975 se tornou o Estado da Guanabara) ao Estado do Rio de Janeiro.
“De vez em quando, chove”, diz Motta, professora aposentada da Fundação Getúlio Vargas no Rio (FGV-RJ) e especialista em história política do Rio de Janeiro (principalmente da cidade), comparando os pingos de chuva a projetos que buscam reparar essas mudanças do passado.
“Por exemplo, quando há algum evento como a ECO-92 (Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada na cidade do Rio em 1992), vem esta ideia de transformar o Rio novamente em capital do Brasil.”
Em maio deste ano, “choveu” de novo: os pesquisadores Christian Edward Cyril Lynch, Igor Abdalla Medina de Souza e Luiz Carlos Ramiro Junior organizaram e publicaram o livro Rio, 2º Distrito Federal: Diagnóstico da crise estadual e defesa da federalização com propostas que vão desde a transformação do que hoje é a cidade do Rio em segunda capital ou em cidade federal à sua separação do restante do Estado do Rio de Janeiro.
Lynch é professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Souza é diplomata de carreira do Itamaraty e Junior é coordenador-geral do Centro de Pesquisa e Editoração da Fundação Biblioteca Nacional.
Em entrevista à BBC News Brasil por telefone, Lynch afirmou que a cidade do Rio de Janeiro é hoje um “segundo distrito federal” encoberto e uma capital estadual artificial, precisamente por ter essa vocação nacional, que remonta à história de ter sido capital imperial e republicana até a fundação de Brasília, em 1960.
“O Estado do Rio é um minotauro federativo: tem uma cabeça de capital (nacional) e corpo de Estado”, diz o cientista político. “Uma decisão tomada em Brasília tem muito mais impacto na economia do Rio (cidade) do que uma decisão tomada pelo governador do Estado.”
A estreita ligação entre a cidade do Rio e a identidade nacional é materializada, segundo Lynch, nos muitos nomes de ruas, instituições e monumentos em solo carioca que remetem à história nacional, além do símbolo brasileiro que o Rio é para estrangeiros e turistas.
Os tempos de capital deixaram também como herança na cidade muitas propriedades pertencentes à União, além de sedes e escritórios centrais de companhias e órgãos governamentais nacionais, como a Petrobras, uma empresa de capital misto controlada pela União; a Fundação Nacional de Arte (Funarte), a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a Casa da Moeda do Brasil, entre outros.
O contingente de funcionários públicos ainda é grande no Rio — são 223 mil servidores do Executivo federal ali (incluindo ativos e inativos), o segundo maior número no país, atrás do Distrito Federal, que tem 307 mil deles, de acordo com dados da plataforma Painel Estatístico de Pessoal, do governo federal. Nas posições seguintes, vêm Minas Gerais (94 mil servidores) e São Paulo (69 mil).
“Que Estado da federação tem isso (forte presença federal)? Nenhum. Muitas vezes, isso é colocada como uma vantagem do Estado do Rio, mas é um problema, porque você não consegue estadualizar a região. Criou-se um problema de cultura política”, diz Lynch, exemplificando como contraponto São Paulo, com instituições e símbolos estaduais fortes.
O cientista político conta que suas críticas e propostas tiveram origem em uma pesquisa que fez por volta de 2017, quando o Estado do Rio estava “quebrado”. No ano seguinte, em 2018, houve uma intervenção federal na segurança pública do Estado, na qual o governo federal atuou diretamente nos órgãos e na gestão desta área.
Lynch cita também as mais de 10 operações de Garantia da Lei e Ordem (GLO) no Rio desde 2010, com ação temporária das Forças Armadas em cenários de ameaça à ordem pública; e a declaração de calamidade na saúde em 2005 e de calamidade financeira em 2016.
Para ele, estas intervenções evidenciam que, na prática, a União ainda é responsável pelo Rio.
“Cheguei à conclusão que um Estado que tem 40 anos, já passou por todos tipos de governadores e partidos e não consegue se estabilizar tem um problema crônico devido à mudança da capital e à fusão imposta pela ditadura militar”, conclui o cientista político.
Uma segunda capital?
A principal proposta de Rio, 2º Distrito Federal, da transformação novamente do Rio em uma capital, somando-se a Brasília nessa posição, recebeu manifestações de apoio após a publicação do livro de articulistas como Ruy Castro no jornal Folha de S.Paulo e Merval Pereira em O Globo.
Outro defensor da ideia é o deputado federal licenciado Marcelo Calero (Cidadania-RJ), diplomata e ex-ministro da Cultura que atualmente é secretário municipal de Governo e Integridade Pública do Rio. Um outro atributo importante: ele foi orientado por Lynch no mestrado e agora segue no doutorado, em ciência política na UERJ, estudando o processo de transferência da capital para Brasília, a fusão da Guanabara com o Rio de Janeiro e as consequências disso para a cidade do Rio.
Calero diz que a proposta de uma segunda capital, como têm países como Bolívia (Sucre e La Paz) e Holanda (Amsterdã e Haia), é de interesse não só de cariocas como ele, mas deveria ser também dos brasileiros porque “Brasília é uma capital insulada”, o que traria prejuízos para a democracia no país.
“Não é nada contra Brasília (e) seus moradores: trata-se do conceito que formou Brasília como uma capital insulada que impacta a vivência democrática do Brasil. A concentração de todos os Poderes lá faz com que os arranjos sejam muito promíscuos. Dá a sensação de um lugar hermético com pouca pressão popular, uma ilha da fantasia”, afirma o ex-ministro, acrescentando que Brasília foi construída como parte de um projeto elitista representado pelo governo de Juscelino Kubitschek (presidente entre 1956 e 1961) e consolidado pela ditadura militar.
“As democracias e instituições brasileiras só serão fortalecidas com a compreensão que ter um poder insularizado não é saudável: pela questão da promiscuidade (do poder), da falta de pressão popular, pelo próprio histórico.”
Colega de partido de Calero e coordenadora da bancada do Distrito Federal no Congresso Nacional, a senadora Leila Barros (Cidadania-DF) defende, em contrapartida, que o que enfraquece a democracia brasileira é a “usurpação de dinheiro público para financiar projetos pessoais”, e não a posição de Brasília como capital.
“Brasília é um projeto nacional datado do século 18. Foi a partir da construção da capital que o Brasil do interior se integrou ao Brasil da costa litorânea e impulsionou o crescimento de todos os Estados centrais do País. Logo, o Distrito Federal fortaleceu a República e a democracia brasileira”, afirmou a senadora, em nota enviada à reportagem.
Proposta de uma indenização tardia
A deputada federal Clarissa Garotinho (PROS-RJ) avalia que, do “ponto de vista de estratégia política”, transformar o Rio de Janeiro em uma segunda capital seria difícil de acontecer. Mas ela tem um outro projeto, que em 2019 ganhou corpo na Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 148.
A Constituição determina que a União repasse verbas para o Distrito Federal por meio do Fundo Constitucional o Distrito Federal, um apoio para que a capital, suas forças de segurança e serviços funcionem apropriadamente. Em 2021, o valor total previsto a ser repassado é de R$ 15,8 bilhões.
Para Clarissa Garotinho, filha dos ex-governadores do Rio Anthony Garotinho e Rosinha Garotinho, esse fundo deveria ser dividido com o Estado do Rio de Janeiro, como reparação pela perda do posto de capital e pela fusão entre Estados — mudanças que, segundo a deputada, foram feitas sem indenização ou apoio financeiro para que o Rio se adaptasse às novas condições. A PEC proposta pela parlamentar propõe que o fundo constitucional seja dividido entre Distrito Federal e Rio de Janeiro por 10 anos e, depois, seja extinto.
Desde 2019, a proposta está parada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara.
“Da noite para o dia, a gente perdeu absolutamente tudo para Brasília sem ter nenhum tipo de compensação. Acho que qualquer país no mundo iria sentir orgulho de ter uma cidade como o Rio de Janeiro, cuidaria dela muito de perto. Mas aqui no Brasil aconteceu exatamente o inverso: simplesmente resolveram transferir (a capital)”, diz a deputada, nascida em Campos dos Goytacazes (RJ) e moradora do Rio de Janeiro (RJ), em entrevista por telefone.
A compensação tem apoio oficial também da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan), segundo posicionamento enviado por sua assessoria de imprensa: “A Firjan defende a necessidade de compensação ao Estado do Rio de Janeiro pelo fato de ter perdido a capital do país, sem ao menos ter para si um plano de desenvolvimento que gradualmente incorporasse as recomposições necessárias. É impossível analisar a crise financeira que atinge o Estado há anos sem considerar todo seu passado histórico.”
Uma referência comum, apontada tanto pela Firjan quanto por Clarissa Garotinho, é à cidade alemã de Bonn, que deixou de ser capital da antiga Alemanha Ocidental e recebeu um plano de compensação, inclusive financeiro, que vigorou por quase duas décadas. Bonn também recebeu status de cidade federal, uma espécie de segundo centro político no país, com sedes de alguns ministérios e escritórios do Poder central.
A historiadora Marly Motta diz que de fato não encontrou registros oficiais de uma indenização para a cidade ou o Estado do Rio de Janeiro durante sua pesquisa de doutorado, defendido em 1997 na Universidade Federal Fluminense (UFF) com o título O Rio de Janeiro continua sendo… De cidade-capital a Estado da Guanabara. Mas a pesquisadora lembra que, depois da fundação de Brasília, em 1960, o governo federal continuou cedendo por anos imóveis para funcionamento de órgãos fluminenses e cariocas, e também ficou responsável pela folha de pagamento de servidores antigos dos tempos em que o Rio foi Distrito Federal.
Clarissa Garotinho diz que o compartilhamento do fundo entre Rio e Brasília faria justiça à antiga capital e também encerraria, depois de dez anos, um apoio à atual capital que, de acordo com ela, não é mais necessário.
“O apoio financeiro a Brasília foi criado porque era uma cidade, uma capital nova que precisava se estruturar. Que não tinha ainda nenhuma vocação econômica, que não tinha nada, então é verdade que no início o governo federal precisava sim dar todo o suporte pra criação da nova capital. O problema é que esse fundo permanece até hoje: 60 anos depois, Brasília continua com o fundo constitucional que é maior inclusive do que a arrecadação de vários Estados brasileiros”, aponta a parlamentar, acrescentando que Brasília arrecada impostos próprios.
Para Clarissa Garotinho, esse é um ponto que pode atrair apoio de parlamentares de outros Estados à sua PEC, pois de acordo com a deputada a transferência de verbas da União para o DF por meio do fundo constitucional encontra a contrariedade de muitos colegas no Congresso.
Já a senadora Leila Barros, representante da bancada do DF, diz que o fundo constitucional segue sendo muito importante para a capital.
“A existência de mecanismos de financiamento de parte do custeio da municipalidades onde estão situadas as capitais não é exclusividade do Brasil (…). Além de abrigarem a administração federal, as capitais recebem líderes mundiais com frequência e eventos que necessitam de serviços de segurança e saúde preparados para lidar com as especificidades de cada ato. Sem o Fundo Constitucional, o DF não conseguiria custear e manter o padrão dos serviços públicos prestados nestas oportunidades”, afirma a senadora, dizendo que repartir o fundo constitucional “criaria um enorme problema para a administração local e, consequentemente, para a União”.
“Entendo e me solidarizo com a situação financeira do Rio de Janeiro. Porém, a PEC 148 não seria capaz de solucionar o problema do Estado. A solução para passa obrigatoriamente pela construção de desenvolvimento econômico, que explore não apenas a vocação turística, mas que seja capaz de impulsionar outras cadeias produtivas.”
Já Clarissa diz que esta é uma pauta “muito prioritária” no seu mandato mas esbarrou com uma falta de união da bancada do Rio e na pandemia de coronavírus, que atrasou o trabalho das comissões parlamentares.
Como Calero, Clarissa Garotinho também avalia que essa pauta só poderia caminhar com a adesão do Executivo. Ela, que teve encontros recentes com o presidente Jair Bolsonaro, disse que chegou a mencionar sua proposta em um café da manhã com ele antes da pandemia. Segundo a parlamentar, o presidente demonstrou concordar com o objetivo de compensar o Rio, mas avaliou que este seria um tema difícil de caminhar no Congresso.
Hoje preso e réu por ameaçar ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e atacar instituições democráticas, o deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ) chegou a divulgar em 2020 que levaria à frente uma PEC para transformar o Rio de Janeiro em segunda capital. Em uma postagem no Facebook, o parlamentar defendeu que a proposta seria uma forma de concretizar o lema eleitoral de Bolsonaro em 2018, “mais Brasil, menos Brasília”. Não foram encontradas manifestações de apoio à proposta de Silveira por Bolsonaro.
A reportagem procurou também a prefeitura do Rio de Janeiro e o governo estadual do Rio pedindo um posicionamento sobre as propostas de compensação e transformação em capital novamente, mas as respectivas assessorias de imprensa não responderam.
Rio é ‘refém do passado’
Defensores e oponentes de propostas que buscam reverter a perda da capital e a fusão não são de hoje, mas das últimas décadas.
A “desfusão” da Guanabara e Rio de Janeiro chegou a ser debatida durante a Constituinte no final dos anos 1980; a realização da ECO-92 e a concomitante crise do governo Collor em 1992 trouxeram o tema de volta aos debates públicos e à imprensa. Em 2005, um projeto no Senado chegou a prever a realização de um plebiscito para que moradores do Rio (cidade e Estado) escolhessem ou não pela recriação da Guanabara — curiosamente, a proposta foi de autoria do senador Jefferson Peres, amazonense.
Na época, nomes importantes da política do Rio de Janeiro, como Anthony Garotinho, Saturnino Braga (ex-prefeito) e Cesar Maia (então prefeito) chegaram a se manifestar contra a desfusão.
Embora também seja do Rio — cidade e Estado —, a historiadora Marly Motta diz que, como acadêmica e analista política, é contrária a “esse tipo de volta ao passado” representado por projetos de reparação, desfusão e retorno do posto de capital.
“O Rio é o maior refém do seu passado — reiteradamente entendido como uma idade de ouro, depois colocado em uma posição de vítima. É como se o Rio não crescesse, fosse um adolescente”, afirma a professora aposentada da FGV, classificando as propostas relativas a isso como “movimentos espasmódicos” com pouca viabilidade.
“Isso não está na agenda eleitoral de 2022, os candidatos à Presidência não estão falando disso. Não tem nenhuma relação entre as dificuldades que o Brasil está vivendo com o fato de ter uma capital em Brasília.”
Motta questiona também a idealização do passado do Rio como uma idade de ouro, colocando que as evidências e fatos indicam isso nunca ocorreu — ao menos para boa parte da população. Ao ser perguntada sobre algum exemplo disso, ela cita a marchinha “De dia falta água, de noite falta luz”.
“Foi um dos sambas de carnaval que mais fizeram sucesso nos anos 50. Como ‘Lata d’água’, essas músicas dizem muito das condições efetivas da infraestrutura principalmente para as populações mais pobres. Dependendo para quem você pergunte, a memória sobre o Rio não vai ser tão boa assim.”
‘Criatividade institucional’
Enquanto Marly Motta aponta que esses debates não estão se colocando para 2022, o cientista político Christian Lynch e o deputado Marcelo Calero acreditam que as pautas possam prosperar depois, em um eventual cenário sem Bolsonaro na Presidência — quem segundo Calero busca a “destruição”, e não a construção de soluções políticas.
“Este assunto deve estar inscrito em um debate maior. Passada a era Bolsonaro, quais lacunas vamos preencher na institucionalidade brasileira?”, questiona Calero.
Para Lynch, a questão do Rio e outras nacionais demandam uma “criatividade institucional” — que poderia criar novos formatos administrativos, como a volta dos territórios federais, como já foram Amapá e Roraima; além de novas capitais e cidades federais.
“A proposta é pensar o federalismo brasileiro fora dessa chave uniformizada, em que o federalismo é todo igual porque só pode existir um Distrito Federal, e o resto são Estados. Parte da minha cruzada tem a ver com isso, para quebrar as formas mentais que cristalizaram as formas de pensar a estruturação da federação brasileira”, diz o pesquisador, para quem ter nascido na cidade do Rio influencia nas suas propostas “tanto quanto ter nascido no Nordeste justifica defender a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) e no Amazonas justifica defender a Zona Franca de Manaus”.
“Por que Estados menos capazes de se governar têm que ter as mesmas atribuições que os Estados maiores? Por que a organização federativa do Brasil tem que ser rigorosamente simétrica? Acho que depois desse governo, teremos uma oportunidade de reorganizar o país reajustando algumas coisas. Uma delas pode ser o debate das duas capitais.”
Perguntado sobre a viabilidade destas ideias, Lynch diz que o objetivo agora não é tanto pensar em um passo-a-passo concreto.
“Neste primeiro momento, você tem que fazer o que eu acho que está acontecendo: difundir a ideia e contar a história de outro jeito.”